sexta-feira, 3 de abril de 2009

Rabiscos

Oh! Darling

Um misto-quente. Com o que tinha no bolso só conseguiria comprar um mirrado e insosso misto-quente naquele boteco. Nem mesmo a viciante coca-cola poderia acompanhar. Era só sanduíche e pronto. Poderia muito bem pegar aquelas moedas e pagar o ônibus. Era cômodo. Desceria na esquina de casa, se trancaria no quarto, Stones rolando bem alto. E aí era só nunca mais pensar nisso, naquilo, no que quer que fosse.

Mas “I want you”, dos Beatles, estava naquele momento entrando por seus ouvidos, através do aparelho de MP3 vagabundo. Ele olhava para um lado, olhava para outro, e nada. Sabia que estava com fome, na medida em que a gente sempre sabe, não racionalmente, que está com fome, e mesmo assim não queria gastar aquele pouco dinheiro na única coisa em que ele poderia ser empregado naquele momento: um misto-quente sem gosto e, provavelmente, requentado no forno elétrico.

Olhou para o tênis molhado. Olhou para a chuva que caía para além do toldo que o protegia, ali na porta do boteco. Olhou para a porta do jornal para onde não queria nunca mais voltar. Sentiu vontade de fechar os olhos e não olhar mais nada. Mas, na esquina, vindo com a chuva e um guarda-chuva vermelho e azul, ele viu a única coisa que um dia poderia salvá-lo daquilo tudo. Os cabelos estavam molhados, como se a chuva a tivesse surpreendido antes que conseguisse pensar em se abrigar. E assim estava perfeito. Atravessou correndo mesmo com o sinal fechado. Ele riu. Ela riu. A saia que vinha até o joelho, a camiseta do Radiohead, que ele odiava, e o tênis. Molhado. Ela é das minhas, pensou. Ela sempre fora uma “das dele” em sua cabeça.

- Merda de chuva, caiu de repente! – ela chegou com um beijo no rosto e seu perfume

- É! Uma merda – sempre olhando pra baixo, sem ter nada pra dizer a ela, nunca.

- Saiu agora?

- É!

- Que tá ouvindo?

- Abbey Road.

- Hum, prefiro a primeira fase.

Ele também, mas o que ela não sabia era que aquele disco tinha músicas que faziam com que ele se lembrasse dela. Da primeira vez em que entrou na redação e a viu, com os fones, escrevendo aquela merda de coluna social no lugar do colunista em férias. Ela preferia a primeira fase, mas naquele dia usava a camiseta com a capa desse disco. Ela não lembrava. Ele sim.

- Bom, menino, preciso subir. Já estou atrasada e tenho umas matérias pra entregar hoje sem falta.

- Ok.

- A gente se fala depois – despediu-se com um beijo no rosto e levando embora aquele perfume.

Ele a viu continuar a caminhada por mais alguns metros em direção ao jornal. Entrou sem olhar para trás, como sempre fazia. Ele ainda ficou com o olhar fixo na porta do prédio por mais alguns segundos. Olhou para a janela da redação no segundo andar. Percebeu a chuva que caía mais forte. Olhou para o ponto de ônibus e para dentro do boteco. Entrou e jogou as moedas no balcão. Pediu uma coca cola. Gelada. Saiu do boteco sem se importar com aqueles pequenos problemas insignificantes. Foi embora na chuva, a pé. Voltou, no aparelho de MP3 vagabundo, para a faixa 4 do CD, a que mais fazia com que se lembrasse dela. Antes de seguir definitivamente para meia hora de caminhada para casa, passou mais uma vez pela porta do jornal, para o qual ainda tinha um bom motivo para voltar todos os dias, por um bom tempo.

4 comentários:

  1. Roberto, lendo esse texto estou quase achando que conheço um texto teu sem assinatura, pelo teu estilo. Lembrei até dos tempos da faculdade, tu continuas o mesmo. E continue, cara. É isso. Abraço
    Obs: li do começo ao fim.

    ResponderExcluir
  2. É bom te ver voltar com os contos. Amos suas resenhas de livros, discos, filmes, shows, mas os seus contos ... são tão seus! rs

    Curti muito, moreno.
    Aquele beijo

    ResponderExcluir
  3. Don Mimi de las Maresias Buenas9 de abril de 2009 às 20:23

    Mais um contista na Realejo,hein.Parabens pelo texto.Sabadão de Aleluia show do Velhas.
    Espero você lá compadre

    ResponderExcluir
  4. eu continuo sem saber qual comentário fazer...

    ao mesmo tempo, vi a chuva, como numa cena de cinco minutos de uma comédia romântica.
    ele, sem horizontes, mas apaixonado ... ela, ensopada e apaixonante pra ele!

    é... desencontros... que debaixo de chuva traz o tom romântico pro conto.
    =)

    ResponderExcluir